É coisa rara eu recomendar novela. A última vez que lembro de ter tratado do tema de forma empolgada foi na época em que Wagner Moura encarnava um executivo conflituosamente apaixonando-se por uma prostituta, interpretada pela Camila Pitanga.
Se volto ao assunto é porque tenho visto novamente grandes talentos sendo usados em favor de personagens bem construídos. Já tinha falado de Avenida Brasil, mas gostaria de aprofundar dois aspectos da entrevista que dei para o Caderno 2 que fazem dela uma novela diferente.
Embora traga tramas paralelas que seguem a fórmula padrão, de conflitos que se arrastam ao longo da história toda, o núcleo da narrativa é muito mais ágil do que as novelas padrão, e os personagens mais complexos.
A vilã é carola, e embora seja de péssimo caráter ama o filho com afeto genuíno. A mocinha é bondosa mas de uma frieza ímpar quando o que está em jogo é sua vingança, motivo pelo qual ela está disposta até mesmo a abrir mão do amor.
Além da velocidade de resolução dos conflitos, que não passam duas semanas sem ser resolvidos, a construção dos personagens e das histórias também é mais sofisticada.
Não sou teórico das letras, mas arrisco uma comparação literária: as novelas brasileiras estão para os seriados americanos atuais como o romantismo estava para o realismo. Enquanto o primeiro trazia personagens idealizados e histórias menos complexas, o último abandonou tais convenções, substituindo os heróis por pessoas comuns, cujas contradições criavam cenários mais complicados.
Torço para que a dramaturgia brasileira siga nesse caminho de sofisticação. Não porque devemos imitar os americanos. Mas porque personagens nem totalmente bonzinhos nem cem por cento malévolos refletem a ambiguidade que existe em todos nós, e por isso conseguem gerar mais identificação.
A empatia, afinal, pressupõe certa capacidade de identificação: o campo de estudo da “teoria da mente” afirma que a cognição e a interação social adequadas só são possíveis quando conseguimos atribuir estados mentais aos outros, imaginando o que eles estão pensando ou sentindo.
E é mais fácil se identificar com desejos ruins que um personagem bom com raiva possa ter do que com heróis totalmente abnegados. E mesmo uma vilã que consegue amar é mais próxima das pessoas comuns do que alguém absolutamente incapaz de afetos.
Afinal de contas, nós mesmos estamos bem longe de ser personagens ideais.
Daniel Martins de Barros - Psiquiatria e Sociedade
O Estadão
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