“Comício do Partido dos Trabalhadores, dia primeiro de maio de 1999. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de gente, um ‘público’ diferente da militância petista que já posso chamar de tradicional, dezoito anos depois. São jovens das periferias de São Paulo. [...] Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria. [...] Quando o animador do comício anuncia a apresentação de alguns grupos de rap, encerrando com os Racionais MC’s, entendo a presença da moçada: são os ‘manos’.”
Maria Rita Kehl flagrou a proximidade entre o rap e o PT logo nos primeiros anos de “sucesso” (é um pouco impertinente usar essa palavra, tanto eles recusaram sua lógica) do Racionais. Mas eles já estavam lá antes, senão de corpo e alma, certamente de alma. Anos depois, em uma declaração de apoio à candidatura de Dilma Roussef à presidência, Mano Brown lembraria: “Sou da geração que acompanhou o começo, o PT se formando como partido forte e tal. [...] A gente acompanhou as três eleições que o Lula perdeu”. O Racionais se formou em 1989, ano portanto da primeira disputa de Lula à presidência do Brasil. Essa convergência é carregada de sentidos e efeitos que se desdobram até hoje. O primeiro Lula, egresso do sindicalismo, foi a voz anticordial na política brasileira, erguendo-se contra as astúcias da modernização conservadora, apoiada por milhões de sujeitos socialmente massacrados, que se galvanizaram por ela. O primeiro Racionais foi, por sua vez, a voz anticordial na cultura brasileira, inspirada pelo racialismo dos negros estadunidenses, veiculada numa forma seca, franca e direta, capaz de internalizar e capturar o sentido da violência brasileira de uma maneira sem precedentes, e cuja força de verdade poética e histórica era tanta que colocou em crise toda a tradição da cultura popular brasileira, que até então se reconhecia em formas intimamente ligadas aos valores do encontro, da mistura, da conciliação de classes.
Com efeito, na entrevista que Chico Buarque deu à Folha de S. Paulo, em 2004, aventando a hipótese de um “fim da canção”, era no rap que ele encontrava um dos indícios principais desse acabamento. Chico Buarque estava certo: aquele rap anunciava mesmo o fim da canção tal como a conhecíamos, esvaziada pela poderosa verdade histórica de uma outra canção, cuja forma revelava, por sua vez, uma outra sociedade, um outro projeto de sociedade, outros desejos e outros métodos – métodos de luta, de enfrentamento. A voz de Lula e a voz do Racionais foram contemporâneas em um sentido muito preciso: vibraram os mesmos sentidos históricos e milhões de pessoas vibraram com elas. Se, como escreveu Tales Ab›Sáber, Lula era a “voz de trovão”, o Racionais era a voz do porão. “Diário de um detento”, ritmada por Brown a partir do texto de Jocenir (então preso no Carandiru), a canção que extrapolou as fronteiras sociais do rap e tornou o grupo conhecido em todo o Brasil, era o relato inaugural de um verdadeiro continente obscuro da sociedade brasileira, a experiência prisional, aonde nunca uma voz da cultura tinha ido com tanta crueza. E então esse Orfeu mestiço de pele – mas negro simbólico – que é Mano Brown emerge do Hades social nacional com uma antilira inescapável. O porão do Brasil, esse lugar sempre recalcado, e sempre retornando no real, agora era formalizado, capturado em seu sentido, quase me recuso a dizer sublimado, tão perto do real está sua forma. E aquela canção formalizava a experiência no Carandiru e se referia ao grande massacre, o recalque do recalque, o real do real e sua “piscina de sangue”. Era impossível não ouvir.
O surgimento do Racionais é possivelmente o último grande acontecimento da cultura brasileira. O disco Sobrevivendo no inferno, de 1997, é o marco da propagação desse acontecimento. No ano seguinte, FHC começaria a cumprir o ciclo final do PSDB no governo federal. O movimento de propagação do Racionais seria o movimento de ascensão de Lula e o PT. 2002, o ano em que Lula finalmente vence a eleição para presidente da república, é também o último ano em que o Racionais lança um disco de estúdio (Nada como um dia após o outro dia). Nesses últimos anos, não houve propriamente um silêncio; o grupo, bem como cada um de seus membros, separadamente, tocou projetos, compôs canções e as publicou. Mas é difícil deixar de observar, nessa trajetória espelhada entre Lula e o Racionais, que a ausência de discos coincide com a transformação de Lula. A voz de trovão anticordial se transformou no personagem cordial, cujas incontestáveis conquistas sociais foram possíveis por conta de um pacto de classes, onde os pobres ganharam – e os ricos ganharam mais. Enquanto Lula se transformava, o Racionais se transformava também. A recusa às contradições, manifesta no veto à participação em programas de televisão, nas entrevistas escassas, na lógica binária das exclusões (manos contra playboys), foi dando lugar a outras condutas: em 2008, Ice Blue e Mano Brown aceitaram produzir um disco para a Nike, disponibilizado gratuitamente no site da empresa; em 2009, Mano Brown aceitou posar para a capa da Rolling Stone, usando camisa da Nike nas fotos internas; em 2010, Brown gravou um vídeo de apoio à candidatura de Dilma; em 2012, o Racionais fez o show de encerramento de uma premiação da MTV; no ano passado, Edi Rock foi ao programa de Luciano Huck divulgar seu disco.
Seria simples demais manter o espelhamento, falar de uma pactuação do Racionais e compreendê-la no mesmo sentido da transformação de Lula e do PT. Naturalmente, não falta quem os compreenda nesses termos. Pesquisando na internet, é possível verificar uma quebra de identificação entre o Racionais e uma parte de seu público. São muitos os que acusam o Racionais de “vendido”, “entregue” etc. Mano Brown assume as contradições: “Já fui muito mais radical [...] me acostumei com as contradições”. Mas é preciso entender a natureza dessas contradições, se é que são mesmo contradições. Tendo já estabelecido o sentido cultural do que me parece ter sido o acontecimento do Racionais nos anos 1990, tentarei compreender onde eles estão agora e qual o sentido de sua transformação.
“O rap é política, certo; conforme a política muda, a sua visão muda. Conforme ela se movimenta, você se movimenta [...] Esse governo é o governo do povo”. A partir dessa e de outras declarações de Mano Brown valorizando feitos do PT é possível pensar que a eleição e consolidação de um governo de esquerda (com todas a suas limitações) no Brasil tenham propiciado que Brown e o Racionais pudessem se liberar de certo fardo do heroísmo. O heroísmo não designa apenas uma liderança, a capacidade e responsabilidade de orientar o coletivo, mas também a disposição para o sacrifício do individual em privilégio daquele. Com efeito, na entrevista para a Rolling Stone, Brown declara: “Eu queria ser mais um. Mais uma roda, não o propor maquinista. Não dá para nascer Bob Marley todo dia, não dá para nascer Tupac ou Lula todo dia”. Essa liberação do heroísmo, do papel de orientador e modelo, bem como das restrições que isso coloca ao desenvolvimento de algumas possibilidades – essa liberação tem na música o seu grande caminho de afirmação. Aqui é preciso destrinchar as coisas, pois é óbvio que desde o início foi a música o veículo, justamente, do que estou chamando de heroísmo do Racionais. Se é assim, o que significa dizer que a transformação do Racionais vai do heroísmo à afirmação da música?
Façamos uma diferença entre a música e a voz. O Racionais foi um acontecimento político dentro da cultura. Sem deixar de ser (grande) arte, o horizonte de realização daquelas canções era (também) a transformação social. As canções apelavam diretamente para a consciência dos manos, orientando-os para mudanças em seus comportamentos individuais e coletivos. A voz do Racionais se desdobrava em duas, no fundo inseparáveis: a voz musical, voz na canção, e a voz que continuava para além da canção, nas falas de Brown, nas entrevistas, e pela qual havia e ainda há sempre uma grande demanda. O rap, o gênero do Racionais, é ritmo e poesia, som e política, concreto e abstrato, significante e significado, em suma, música e voz. Parece-me que o sentido da transformação do Racionais nos últimos anos é o de abrir maior espaço para a música dentro da voz. “O nosso amor é a música, mais até do que a política. O que me trouxe à política foi a música”, diz Brown. A voz não parou, não perdeu seu gume nem sua negatividade, mas se abriu, por dentro, em seus dois âmbitos – o político e a canção – para que a música pudesse ser mais liberada.
Pois liberar a música implica, num plano político e concreto, viabilizá-la financeiramente. A ida de Edi Rock ao programa de Luciano Huck atende a esse desejo, assim com o show para a MTV. Brown diz ainda ter investido na indústria do rap boa parte do dinheiro que ganhou com o projeto para a Nike. As ações do Racionais abrangem um selo (Cosa Nostra) e uma empresa (Boogie Naipe) que gravam e apoiam diversos artistas do rap brasileiro. A horizontalidade política dos manos se desdobra agora no apoio à coletividade dos rappers. Mas a liberação da música se manifesta, sobretudo, nas canções feitas nos últimos anos.
Ouça-se, por exemplo, “Mulher elétrica”. Para início de conversa, a letra é afirmativa, descreve uma mulher potente, exuberante, emancipada. Bem diferente daquela representação desconfiada do feminino, das mulheres plutólatras e traidoras (“Mulheres vulgares”). Isso talvez ajude a permitir uma abertura musical para tradições mais relaxadas da música negra. Quanto a isso, confirma-o também a parceria agora constante com William Magalhães e a banda Black Rio, uma das referências da mistura de funk, samba e jazz na música brasileira. Ouça-se também “Mente do vilão”. A forma seca cede lugar a um arranjo mais complexo de piano, metais e vocais de fundo. A letra se torna mais enigmática (embora aqui o que considero enigmático possa ser sobretudo a minha ignorância das gírias empregadas, e gírias são os operadores ao rés-da-realidade por excelência). Há mesmo vídeos em que Mano Brown dança de forma diferente. Aquela dança “que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma” abre espaço para um corpo que flutua na música, permitindo-se a transcendência.
Parece certa essa maior abertura musical nesse momento do Racionais, com tudo o que isso exige e implica. É difícil determinar o que veio primeiro, se uma abertura, no sentido de uma complexificação, nas ideias políticas, que terá propiciado a abertura musical (“Eu ouvia pouco. Falava muito e ouvia pouco. Hoje, eu continuo falando muito, mas eu ouço muito também. Isso interfere nas músicas, não tem como negar.”); ou o contrário, um desejo de abertura musical que obrigou a uma flexibilização (“O Racionais parece ter uma cartilha a seguir e não fomos nós que a escrevemos. Foi a opinião pública. Somos reféns das palavras, mas não posso ser refém de nada, nem do rap. Vamos quebrar.”). Seja como for, o desejo pela música não anula a voz e sua negatividade crítica. Como se sabe, uma das canções dos últimos anos foi “Mil faces de um homem leal”, uma homenagem a Marighella. E Brown aparece em diversos vídeos falando sobre a realidade social brasileira. Talvez se deva dizer que foi se formando uma maior tensão entre a voz e a música, um desejo de conciliar a intransitividade alegre e plena da música com a transitividade crítica e incompleta da voz.
A voz de Mano Brown, voz do Racionais MC’s, foi a última grande voz pensante na canção popular brasileira. Não se pode dizer que eles são herdeiros da tradição dos cancionistas pensadores dos anos 1960, já que, ao contrário, seu surgimento representa uma descontinuidade com eles. O Racionais é, antes, o primeiro dos arautos de uma cisão entre a cultura popular tal como a conhecíamos e o pensamento sobre o Brasil. Essa cultura popular, enformada pela mistura e conciliação de classes, soube inventar soluções inspiradoras para os problemas estruturais da sociedade brasileira. Mas essas soluções nunca se efetivaram em transformações sociais. Acredito que isso colocou em questão a forma dessa cultura popular e esvaziou seu papel de referência ou inspiração para novos projetos de sociedade (vigente, por exemplo, na conhecida frase de Caetano Veloso: “O Brasil precisa merecer a bossa nova”). O Racionais foi o primeiro a declarar essa crise.
Francisco Bosco
é escritor e ensaísta
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