Maria Rita Salzano Moraes
Durante muito tempo inadequadamente considerado “pré-psicanalítico” e, por consequência, de menor interesse para a psicanálise, Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (Freud
[1891] 2013), finalmente é publicado no Brasil. A tradução direta do
alemão realizada por Emiliano de Brito Rossi para a Coleção Obras
incompletas de Sigmund Freud (ed. Autêntica) traz-nos, em uma leitura
rigorosa, os primórdios da reflexão crítica de Freud sobre linguagem,
com afirmações e propostas desconcertantes até para os dias atuais.
Mesmo sem possuir uma pesquisa própria sobre o assunto, Freud decide,
em 1891, investigar a literatura sobre as afasias (Wernicke, Broca,
Meynert, entre outros) para introduzir um avanço na discussão da época.
Na literatura médica sobre a afasia, até 1891, a faculdade da
linguagem articulada estava localizada nos lobos anteriores do cérebro.
Broca e Wernicke definem a correlação precisa das perturbações da
linguagem com regiões determinadas no cérebro: enquanto as imagens
mnêmicas dos movimentos da linguagem são conservadas no centro motor
(área de Broca), as imagens sonoras são armazenadas no centro sensorial
(área de Wernicke). As lesões ocorridas em um desses centros resultam,
respectivamente, em afasia motora ou sensorial. Além da afasia
decorrente de uma lesão central, Wernicke propõe ainda uma afasia de
condução, a parafasia, resultante da lesão nas vias de associação entre
os centros.
Nesse ensaio, Freud percorre e analisa inúmeros casos de perturbações
da linguagem descritos segundo a concepção de autores cujo trabalho ele
toma como ponto de partida e analisa resultados de casos cujos
sintomas, além de se revelarem incompatíveis com a teoria proposta por
esses autores, demonstram a impossibilidade de uma explicação baseada
inteiramente na hipótese da localização anatômica. A partir dos casos em
que não se podem explicar os distúrbios da linguagem localizando
pontualmente o correspondente fisiológico da representação no cérebro,
Freud os avalia como resultado de complexos processos associativos que
se estendem além dos assim chamados centros da linguagem.
Palavra, ponto nodal
Ao propor a divisão da palavra em representação de palavra e
associações de objeto, Freud retira a representação de sua unidade
psicológica e a transforma em uma entidade lógica e dialética. A
representação deixa de representar o objeto, para se tornar a diferença
entre séries de processos. Não se trata, portanto, da diferença entre
entidades previamente existentes, mas de um processo de diferenciação
como princípio de constituição desse aparelho.
À palavra corresponde uma associação de imagens mnêmicas auditivas,
visuais e motoras e seu significado se constrói na articulação da imagem
acústica da representação de palavra com as imagens visuais das
associações de objeto. As associações de objeto, por sua vez, não
constituem, para Freud, o objeto ou a coisa externa, a referência, mas
sinais de uma percepção difusa. Porém, o fundamental dessa proposta é
que à palavra é dada a possibilidade (por sua constituição complexa) de
ser sempre um ponto nodal, e facilitar o deslocamento no caminho das
associações do falante, proporcionando os disfarces da ambiguidade e da
condensação.
Não existe, então, um campo da linguagem antes de haver linguagem, ou
que não seja construído por linguagem. Não há, portanto, nessa
concepção do aparelho de linguagem, nada da ordem da mecânica de uma
causalidade. Freud já está trazendo uma dinâmica da simultaneidade na
constituição desse aparelho. As diferenças na associação desses
elementos visuais, auditivos e motores constituem as representações. É
importante lembrar que a representação não pode ser, na proposta de
Freud, anterior à associação. A representação não é uma unidade
constituída que se associa a outras unidades por somação. A lei da
associação, ou sua razão, é a simultaneidade. Ao dizer que “não podemos
ter sensação alguma sem associá-la imediatamente” (p. 80), Freud está
passando a limpo toda a teoria da percepção, da associação, para dizer
que não há nada fora da linguagem.
Maria Rita Salzano Moraes
é docente do Departamento de Linguística Aplicada da UNICAMP
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