Não
vi no detalhe a prova do Enem. Sei que professores de cursinho divergem
sobre a resposta de algumas questões, a maioria relacionada a
interpretação de texto, que costuma mesmo ser terra de ninguém. Mas não
vou me ater a isso agora. Quero aqui comentar o tema da redação.
Poucas
pessoas se deram conta de que o Enem — quem quer tenha elaborado a
prova — deu à luz uma teoria e obrigou os pobres estudantes a escrever a
respeito, a saber: “O movimento imigratório para o Brasil no século
XXI”. Ainda
que houvesse efetivamente um fenômeno de dimensão tal que permitisse
tal afirmação — não há —, cumpre lembrar que estamos apenas nos 12
primeiros anos do referido século.
“Século”,
em ciências humanas, não é só uma referência temporal. É também um
tempo histórico. Mais 30 anos podem se passar, sem que tenhamos chegado à
metade do século 21, e podem diminuir drasticamente as correntes — que
nem são fluxo nem são movimento — de migração para o Brasil. Tratar esse
evento como característica de século é burrice. Provo: “O PT é o
partido que mais elegeu presidentes no século XXI”. O que lhes parece?
Ou ainda: “O PSDB é o maior partido de oposição do século XXI no
Brasil”. Ou isto: “O PMDB, no século 21, participa de todos os
governos”.
Ao
estudante, são apresentados três textos de referência. Um deles trata
da imigração para o Brasil no século 19 e começo do século 20 e de sua
importância na formação do país. Um segundo aborda a chegada dos
haitianos ao Acre, e um terceiro trata dos bolivianos clandestinos que
trabalham em oficinas de costura em São Paulo.
Vejam
que curioso. O examinador acabou fazendo a redação — e das ruins,
misturando alhos com bugalhos. Tenta-se induzir os alunos a relacionar
essas duas ocorrências recentes — a chegada de haitianos e de bolivianos
— aos fluxos migratórios do passado, quando houve um claro incentivo
oficial à entrada de imigrantes. Os fatos de agora não guardam qualquer
relação de forma ou conteúdo com o que se viu no passado.
Mas
e daí? O Enem não está interessado em rigor intelectual — e bem poucos
alunos do ensino médio teriam, com efeito, crítica suficiente para
estabelecer as devidas diferenças. A prova não quer saber dessas
diferenças — e chego a temer que um aluno mais preparado e ousado,
coitado!, possa quebrar a cara. Um ou outro poderiam desmoralizar a
“teoria”, com o risco de ser desclassificado.
Na
formulação da proposta, pede-se que o aluno trate do tema “formulando
proposta de intervenção que respeite os direitos humanos”. Assim,
exige-se do pobre que, além de defender e sustentar com argumentos uma
tese estúpida, ainda se comporte como um verdadeiro formulador de
políticas públicas ou, sei lá, um especialista em populações.
Essas
duas exigências foram já incorporadas às provas de redação do Enem.
Muito bem: digamos que um estudante seja contrário a que se concedam
vistos a quaisquer pessoas que cheguem clandestinas ao Brasil,
defendendo que sejam repatriadas. Esse aluno hipotético estaria apenas
cobrando respeito à lei — pela qual deve zelar o Poder Público — o mesmo
Poder Púbico que realiza a prova.
Digam-me
cá: a repatriação de clandestinos é uma “intervenção aceitável”, ou o
estudante está obrigado a concordar com o examinador, como há de ceder
que, afinal, dois mais dois são quatro? A repatriação, no caso, seguindo
os passos das leis democraticamente instituídas no Brasil, caracteriza
um atentado aos direitos humanos? Até agora, o próprio governo federal
não sabe o que fazer com os haitianos, e o Ministério Público do
Trabalho não consegue coibir a exploração da mão de obra boliviana. Por
que os estudantes teriam de ter para isso uma resposta?
Atenção!
Eu nem estou aqui a defender isso ou aquilo. Noto apenas que a
imigração ilegal divide opiniões no mundo inteiro e que é um absurdo,
uma arrogância inaceitável, que se possa, depois de inventar uma tese,
estabelecer qual é a opinião correta que se deve ter a respeito,
exigindo ainda que os estudantes proponham “intervenções”, porém
vigiados pelo “Tribunal dos Direitos Humanos”. Aí o bobinho esperneia:
“Mas defender os direitos humanos não é um bem em si, um valor em si?”.
Claro que é! Assim como ser favorável ao Bem, ao Belo e ao Justo. A
questão é saber que tribunal decide quando “os direitos humanos” estão
ou não a ser respeitados. Eu, por exemplo, considero que seguir leis
democraticamente instituídas ou referendadas, segundo os fundamentos da
dignidade humana (a integridade física e moral), é uma expressão
eloquente dos… direitos humanos!
A
prova é apenas macumbaria multiculturalista mal digerida — não que
possa haver uma forma agradável de digeri-la, é bom deixar claro! As
provas de redação do Enem — e de vários vestibulares — têm cobrado que
os alunos sejam mais bonzinhos do que propriamente capazes.
Não
por acaso, nas escolas e nos cursinhos, as aulas de redação têm-se
convertido — sem prejuízo de o bom professor ensinar as técnicas da
argumentação — numa coleção de dicas politicamente corretas para o aluno
seduzir o examinador. Com mais um pouco de especialização, o pensamento
será transformado numa fórmula ou numa variante do “emplastro
anti-hipocondríaco”, de Brás Cubas (o de Machado de Assis), destinado “a
aliviar a nossa pobre humanidade da melancolia”.
É
o que têm feito os professores: um emplastro antipoliticamente
incorreto, destinado a “aliviar os nossos pobres alunos da tentação de
dizer o que eventualmente pensam”.
Isso, como todo mundo sabe, é o contrário da educação.
A
partir de hoje, começo a escarafunchar as teses de especialistas
brasileiros em geografia humana e populações em busca do “Movimento
Migratório para o Brasil no século 21″ — nada menos. Segundo critérios
estritamente intelectuais, essa prova de redação deveria ser
simplesmente impugnada.
Sei
que não é conforto para os alunos que fizeram a prova, mas escrevo
mesmo assim: se vocês não tinham muito o que dizer a respeito, não
fiquem preocupados — vocês foram convidados a falar sobre uma falácia,
sobre o nada.
Via Sertão Potiguar
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