“Futebol
e política, política e futebol se misturam como água e sabão, e seria ainda
melhor se um e outro fossem mais limpos do que são”, escreve o jornalista Juca
Kfouri em suas memórias. Recém-lançadas sob o título Confesso que
perdi (Cia das Letras), as histórias de vida de um dos mais
conhecidos jornalistas do Brasil entrelaçam-se de tal forma às trajetórias da
política e do futebol no Brasil que, de fato, fica difícil separar as coisas. A
única forma de narrar as três histórias é misturando-as.
Assim, os
capítulos que organizam Confesso que perdi têm
como títulos combinações de acontecimentos políticos e esportivos, como “Duas
derrotas: Diretas Já e Democracia Corintiana”. Com algumas voltas, o livro
segue mais ou menos a cronologia linear da história política recente do Brasil,
do golpe militar de 1964 até os governos PT, passando por copas do mundo, pela
redemocratização brasileira, pelos principais campeonatos nacionais e pelos
movimentos políticos dentro do futebol, normalmente considerado algo alienante
pela elite acadêmica do Brasil.
Embora se
autoproclame, logo no título, um “derrotado”, o jornalista dificilmente seria
classificado assim: Kfouri foi diretor das revistas Placar e Playboy, além de
colunista dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, sendo, atualmente,
comentarista esportivo da ESPN-Brasil e da Rádio CBN. Antes disso, nos
anos 1970, estudou Ciências Sociais da USP, onde se envolveu com a militância
política de esquerda da Ação Libertadora Nacional (ALN, o partido de oposição à
ditadura), tornando-se responsável por ajudar quem precisasse fugir do Brasil,
arranjando documentação e esconderijos temporários. Foi aí que sua vida – que
desde cedo já estava misturada ao futebol – atrelou-se definitivamente à
política.
“Eu era um
menino de 17 anos que estava começando a fazer militância política. O que me
incentivava, mais que conhecimento, mais que ideologia, era um enorme
sentimento de indignação”, lembra. À CULT, Kfouri fala sobre a recepção de Confesso que perdi, fazendo um balanço de sua
trajetória como militante de esquerda e jornalista esportivo-investigativo – e
comenta a atual situação política do Brasil, apontando os erros da esquerda e o
impacto político do 7 a 1.
CULT – Você sempre se identificou com a esquerda, e não esconde
isso em suas memórias. Como está sendo a recepção do livro neste momento
politicamente conturbado?
Juca Kfouri – A repercussão
está sendo muito melhor do que eu imaginava, até agora não saiu nenhuma crítica
negativa. Mas o momento político está sendo importante também. Eu passei a ser
muito mais alvejado por anti-petistas depois do impeachment do que era antes.
Muita gente que me adorava como jornalista esportivo antes do impeachment
passou a me odiar depois porque descobriu em mim um petista que eu não sou. Eu
sou apenas contra o impeachment. Mas para muita gente, isso é ser “petralha”.
Acho que se eu lançasse este livro antes, talvez não houvesse esse tipo de
leitura. Mas é o que eu sempre digo: enquanto a gente sentir frio na
barriga, quer dizer que a gente está vivo.
No livro você menciona que, em seus anos nas Ciências Sociais,
via o futebol como possível instrumento de luta política. O que mudou de lá
para cá?
Nas Ciências Sociais, nos anos 1960, o futebol era visto como
alienante, como algo que atrasaria a luta social. O pessoal da Usp só se
preocupava, de fato, com a luta contra a ditadura, como se o futebol não
pudesse fazer parte disso. Eu achava o contrário. Do fim da ditadura para cá,
isso não só mudou, como mudou para melhor, porque o futebol passou a ser assunto
de muitas teses acadêmicas. A parte esportiva da Biblioteca Acadêmica cresceu
muito. Na época em que eu estava na Sociais tinha pouquíssimas teses, hoje há
mais 1.300 sobre o tema. Isso reflete uma outra visão sobre o futebol – uma
visão mais crítica.
É possível o surgimento de outra organização como a Democracia
Corintiana?
Aquilo foi algo muito particular. Nasceu daquele ambiente da
campanha das Diretas, quando os objetivos de toda a esquerda eram os mesmos –
derrubar a ditadura. Hoje, houve algumas tentativas semelhantes: depois de
2013, por exemplo, tivemos o Bom Senso Futebol Clube, que acabou sendo
soterrado pelo caos político, e não deu certo. Neste momento atual, acho muito
difícil imaginar um movimento como a Democracia. É uma questão de contexto, mas
também de educação básica e de ensino superior.
Como assim?
Aquele contexto era muito mais propício para o surgimento de
algo assim. Ao mesmo tempo, nosso sistema educacional não é voltado para formar
cidadãos, mas para criar e manter oprimidos. Se o povo brasileiro em geral não
é politizado, imagine o atleta, que é criado para a competição, para vencer, e
não para pensar em política. Assim, fica cada vez mais difícil a criação de um
movimento de resistência dentro do futebol.
Algumas pessoas brincam que o Brasil desandou depois da última
Copa. O futebol tem poder sobre as relações sociais e políticas no Brasil?
A relação é curiosa. Veja, ninguém disse que a Copa de 1970 foi
ganha pelo General Médici, embora ele fosse o presidente na época. Da mesma
forma, ninguém colocou a culpa do 7 a 1 na Dilma. Nós perdemos da Alemanha de 7
a 1, foi o maior vexame da história do nosso futebol. Aquela derrota, de fato,
é um marco da virada da “fla-flulização” da nossa política. E Dilma foi xingada
nos estádios, mas ainda assim foi reeleita. E ainda assim, o Brasil está
classificado para a Copa de 2018, está todo mundo encantado com o time do Tite. Eu não estabeleço uma relação direta entre política
e futebol. Mas é óbvio que a superestrutura do nosso futebol é a outra face da
superestrutura da nossa política. O [ex-presidente da CBF] Ricardo Teixeira
está proibido de sair do Brasil pela Interpol, assim como o atual presidente,
Marco Polo Del Nero, e o José Maria Marin, que estão nos Estados Unidos. Você
olha para a Lava-Jato e pode enxergar, se quiser, a mesma estrutura de
corrupção. As pessoas devem ter clareza disso.
Você esteve presente nas Diretas Já e também viveu as
manifestações de Junho de 2013. Vê aproximações entre estes dois marcos?
Os dois são absolutamente diferentes. Acho que as manifestações
pelas Diretas eram caracterizadas pela unidade do país: o país inteiro queria
votar, independentemente de quem seria o candidato. Queríamos ter o poder de
escolha. Já as manifestações de 2013 nasceram de uma simples manifestação
contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo e, em função da reação
violenta da polícia militar, se transformaram em uma trilha de pólvora que
acabou explodindo em vários pontos do país. Ali, foi a gota d’água que
transbordou. Só que, ao contrário das Diretas Já, Junho de 2013 aconteceu da
forma mais desorganizada possível. Tinha de tudo na rua. Como o Lula disse,
havia pessoas que não tinham pão e havia pessoas que já tinham pão e queriam
manteiga. E aí, abriu-se espaço para o que temos hoje aí, na política, em
termos de conservadorismo.
As redes sociais são, hoje, o equivalente à intensa atividade
política daquela época?
Sem nenhuma postura saudosista, acho fácil demais se manifestar
pelas redes sociais. Eu prefiro aqueles que vão para as ruas, que correm
riscos, que apanham da polícia, porque esses dizem alguma coisa de fato. Na
minha época, a gente levava cacetada e ia preso, mesmo com medo. Nas redes
sociais as pessoas se escondem. Agora, claro que não se pode ignorar o papel das
redes. Veja a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, veja a eleição de
João Doria em São Paulo: a manipulação das redes sociais trouxeram estes
resultados. Mesmo assim, pelas pesquisas, se vê que há um desencanto dos
eleitores, que não é refletido pelas redes. Quero dizer: como assim, 55% da
população paulistana é contra Doria presidente? Eu me surpreendi vendo isso.
Pelas redes, achava que o cara era super popular. A gente é levado a ter
conclusões erradas quando vive nessas bolhas.
Nas redes, há quem defenda a volta da ditadura militar. Como
você, que lutou contra a ditadura, vê isso?
Eu tenho até preguiça de pensar nisso porque é algo muito
recente. É o sinal mais forte da ignorância política em nosso país. Gente que
não viveu a ditadura – ou que até viveu, mas que não acredita que o regime fez
o que fez, que torturou, matou, censurou. Claro, tem gente com uma cabeça
desviada, que acha que tem que ser assim mesmo. Mas também tem gente que quer
ordem, e que não percebe o que a ditadura traz junto, inclusive corrupção, de
que as pessoas reclamam tanto. Na época da ditadura, havia corrupção de sobra,
mas ninguém podia noticiar, é claro. Era o silêncio dos cemitérios. Mas a
impressão é que os militares eram limpos.
Em determinado momento do livro, você diz que “a democracia é
uma coisa complicada”. Ainda acredita nisso?
A democracia que a gente imaginava durante a ditadura era
baseada em um fato simples: naquela época, era muito fácil separar o “bem” do
“mal”. Porque quem era a favor da ditadura era “do mal” e quem era contra era
“do bem”. Só que, quando a ditadura acabou, percebeu-se que nem tudo era tão
simples. Existia gente de direita e “do bem”, gente de esquerda e “do mal”,
existia de tudo, porque é disso que se trata a democracia. E a única solução para
isso, na minha opinião, é mais democracia. A democracia brasileira, porém, é
baseada num modelo político arcaico, que não tem nada a ver com representação.
É um modelo que se vale do dinheiro para eleger representantes, e acaba sendo
uma democracia distorcida – veja, já tivemos dois impeachments depois da
redemocratização, que aconteceu há pouquíssimo tempo.
Que soluções podem ser viáveis?
Acho que podemos pensar como modelos os países escandinavos.
Claro, eles são muito menores do que o Brasil, e de culturas muito diferentes
da nossa, mas há uma série de medidas que podem, sim, ser aplicadas aqui. Votos
por distrito, que trariam a política para mais perto da realidade dos
eleitores. Ou facilitar novas eleições caso o presidente eleito não seja bom o
suficiente, sem ter que passar pelo trauma do enorme processo de impeachment.
Mas acho que a reforma política está muito aquém do povo, aqui no Brasil.
Ninguém sabe o que está acontecendo.
É assim que a reforma trabalhista tem sido feita.
Exatamente. Acho a reforma trabalhista necessária, porque o
mundo mudou. O capitalismo mudou, o capital mudou, as relações de trabalho e os
meios de produção mudaram. Mas isso é enfiado goela abaixo por este governo,
que não tem legitimidade nenhuma para fazer uma reforma desta magnitude. E, até
por uma questão tática, a gente é obrigado a ficar contra.
Em suas memórias, você afirma que, em sua militância da
juventude, “a sensibilidade e a indignação sobrepujavam o realismo”. Ainda há
resquícios dessa cegueira idealista?
Só posso falar com base no que eu vivi e no que eu vejo, mas
acho que não. Hoje é diferente. Eu era um menino de 17 anos que estava
começando a fazer militância política. O que me incentivava, mais que
conhecimento, mais que ideologia, era um enorme sentimento de indignação.
Afinal, tivemos um presidente tirado do poder sob mentiras de que havia uma
“ameaça comunista”. Aquilo era um absurdo. Hoje, podemos até dizer que houve um
golpe, mas não vivemos um Estado de exceção. Não há uma ditadura. Então, a
solução é o debate político.
Não há ditadura, mas há um conservadorismo tomando forma no
poder. Um exemplo é o que está acontecendo com as censuras a exposições e
outras formas de arte.
Sim, e isso é um reflexo muito claro das pessoas que, com pouca
ou nenhuma informação, se manifestaram pelo impeachment. São pessoas que não
têm noção do que seja arte. É só ver Alexandre Frota nas ruas, se manifestando
contra a pedofilia e contra a pornografia, pela família brasileira. Quer melhor
exemplo do que isso? É uma gente tão ignorante que é incapaz de entender que o
olhar de uma criança para qualquer coisa é completamente diferente do olhar de
um adulto. Essa coisa da penalização do nu, do pecado do nu, isso é uma
bobagem. É obscurantismo. Parece que nem passamos pelo Iluminismo, séculos
atrás.
Acredita que o conservadorismo seja de responsabilidade da
esquerda que esteve no poder?
Sim, os erros da esquerda facilitaram o conservadorismo. E a
esquerda errou demais. Essa coisa da coalizão do governo PT com o PMDB, por
exemplo, não fez o menor sentido. Outro grande erro foi a esquerda não ter
feito as reformas que eram mais necessárias, políticas e sociais, para não
mexer em um vespeiro. O que houve foi um falso desenvolvimento: formação de
consumidores durante oito anos, uma suposta ascensão dos excluídos, as pessoas
de classes baixas começaram a andar de avião. Mas nenhuma mudança estrutural. E
aí, acabaram ficando parecidos com outros governos, mesmo sendo de esquerda.
Vê possibilidade de uma nova guinada à esquerda? Como?
Não resta outra saída senão a esquerda admitir que errou e
corrigir erros. A atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, diz que o partido
não é uma igreja para ajoelhar no milho, mas eu acho que isso é uma maneira
muito rasteira de não cumprir com a obrigação com o povo brasileiro, com os que
foram decepcionados pelo partido. Fingir que não errou é ridículo. E isso você
vê, inclusive, no jornalismo. Não há nada que o leitor goste mais do que uma
errata, porque isso aproxima você das pessoas; faz com que elas vejam humildade
no seu trabalho. É a mesma coisa com a política.
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