Há cerca de quatro anos, uma pessoa, ao ouvir uma fala minha em
um evento literário no interior de Santa Catarina, interpelou-me, chateada:
“Marcia, eu gostava de você quando você não era política”.
Perguntei a
ela por que me dizia essa frase: ela não quis responder. Perguntei, então, se
ela costumava ler o que eu escrevia, tentando entender o seu “gosto” por mim.
Eu perguntei se havia lido algum artigo, algum texto na internet. Ela
apenas tinha me visto na televisão e, de certo modo, isso lhe bastava.
Comentei
que, a meu ver, estamos sempre mergulhados em política, mesmo quando não
queremos saber dela. Mesmo quando aparecemos ou vemos televisão, isso é
político, pois que a televisão é um meio de poder; não apenas um meio de
comunicação, mas um meio de comunicação do poder. Que nossos atos,
aparentemente “des-políticos” ou “anti-políticos”, servem a algum tipo de
política. Que se nós não sabemos, todavia alguém sempre sabe o que fazer com o
nosso desgosto ou falta de interesse em política. A política abandonada
serviu e serve aos poderosos de sempre, sugeri para que ela pensasse. Ela
não ficou muito interessada, mas prometeu, de um modo muito simpático, ler um
livro meu.
Não foram
poucos os momentos em que estive com pessoas particulares ou grupos diversos
nos quais tive que tratar da mesma questão. E não foi incomum descobrir que
muitas pessoas que “gostavam” ou “não gostavam” de mim nunca tivessem lido um
livro meu. Pensar na força da televisão e na impotência do livro nessas horas
ainda me deixa triste.
O
desinteresse ou desatenção pelo que escrevo não é um problema, evidentemente.
Ler é um direito e não ler também. Preferências de cada um devem ser
respeitadas, embora possam significar algo mais. Há tempos atrás, eu soube de
um professor de uma grande universidade que ia às livrarias e escondia meus
livros para que ninguém os comprasse. Não sei se os lia ou não, mas certamente
os odiava a ponto de precisar escondê-los. Do mesmo modo, há pessoas que
conheço que leram todos os meus livros, ou vários deles, e até presentearam
seus amigos e amores com eles. Eu fico feliz, mas isso é uma questão maior do
que eu mesma, do que meus desleitores ou leitores.
O que me
faz contar isso? Sou escritora e penso ser este um lugar de fala legítimo. Mas
a meu ver há um problema imenso na cultura brasileira, um problema que diz
respeito ao que o sociólogo francês Pierre Bourdieu, por exemplo, chamou
de habitusaquele modo de viver que é introjetado e
resulta em um modo de sentir, de pensar e ser.
Ora, há um
nexo a ser compreendido entre a “despolitização” ou “antipolitização” da vida e
a falta de interesse pelo que há de mais complexo e mais difícil e que, de um
modo geral, faz parte do mundo dos livros e da leitura. Ler e não ler também
são atos políticos. E políticas da leitura e da escrita não podem ser deixadas
de lado quando se trata de pensar um mundo melhor para se viver com pessoas
melhor preparadas subjetivamente.
Entre a
política e a leitura há uma analogia que nos ajuda a entender a nossa época.
São dois hábitos que exigem esforço e que, depois de transpostas as dificuldade
do hábito, se não definem um novo prazer, pelo menos nos ajudam na expansão de
nossas visões de mundo.
Eu fico
triste de ver que telas (sejam de televisão, sejam de computador), suplantem os
livros em nossa época. Que tipo de subjetividade surge desse habitus da não-leitura, em uma época em que
a escrita é instrumentalizada de tantas formas, inclusive na internet, é uma
questão para pensar.
*Revista CULT/Márcia Tiburi
Ilustração: 'La Liseuse', pintura a óleo de Jean-Honor Fragonard (Reprodução/ National Gallery of Art, Washington
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