Por ALÍPIO DE SOUSA FILHO - Tramita na Câmara Federal o projeto de lei 1411/2015, de inciativa do deputado federal do RN, Rogério Marinho (PSDB), que criminaliza o que o projeto chama “assédio ideológico” e que presume ser uma prática no ensino no país. Para o projeto de lei, tal assédio seria a prática de professores que visariam impor aos estudantes posicionamentos políticos, partidários, “ideológicos” ou qualquer tipo de “constrangimento” que os obriguem a adotarem posicionamentos diversos aos que sustentam. Como é concebida como uma prática a ser tratada como crime, o projeto estabelece pena de prisão e multa para professores ou outros agentes da educação que o cometerem.
Vistos muitos projetos bizarros e folclóricos apresentados nas casas legislativas brasileiras, em todos os níveis, não é tão espantoso assim que mais um parlamentar apareça com um projeto dessa natureza. Projeto que, se aprovado, será declarado inconstitucional, logo em seguida, por tão desarrazoado. Mas, professores e educadores não podem deixar de reagir, manifestando-se contra uma tão absurda ideia.
Em primeiro lugar, há que se desmascarar a pretensão do deputado em chamar de “ideológico” o pensamento teórico que não difunde as ideias que ele professa e que certamente não as toma por também “ideológicas”. Ele procede como Napoleão Bonaparte: são os adversários que são os ‘ideólogos”, ele próprio, não!
Ora, desde Marx e Engels, ao escreverem o livro “A ideologia alemã”, o sentido para o termo ideologia é totalmente um outro que essa confusão de conceber todas as ideias como “ideológicas” ou estas como sendo as ideias dos adversários ou inimigos. Esses autores bem definiram a ideologia como o fenômeno pelo qual ideias e representações sociais são capazes de produzir umainversão na visão humana e social sobre a gênese e o caráter da realidade social e histórica, ao esta adquirir a aparência de autônoma em relação à própria sociedade e aos seus agentes. Isto é, a realidade social ganhar aspecto de algo que existe sem a participação da ação humana, sem história, uma quase-natureza, realidade transcendental ou divina.
Analisando particularmente a sociedade capitalista, embora o fenômeno seja igual em todas as outras, os autores também destacaram uma relação intrínseca entre ideologia e as ideias e representações de uma classe social particular, a “classe dominante”. Para eles, a ideologia corresponde às ideias dominantes e, como escreveram, essas ideias são, em cada época, as ideias da classe dominante porque é essa classe que detém igualmente o monopólio dos meios de difusão das ideias na sociedade. E quais são as ideias dominantes difundidas por esses meios? São ideiasnegadoras das relações sociais que imperam na sociedade, por serem a expressão mascarada das relações que tornam possível que a classe que tem poder econômico seja dominante, sendo, portanto, as ideias que disfarçam a dominação social e política dessa classe. Marx e Engels concluem que são “as ideias de sua dominação”. Assim, conceituada como as ideias da dominação, a ideologia não corresponde a quaisquer ideias e nem a todas as ideias.
Conquanto a percepção de Marx e Engels traga algo da ideologia que é ser sempre as ideias da dominação, definição a se conservar, após suas análises pioneiras, muitos estudiosos já demonstraram, numa conceituação pós-marxista do fenômeno da ideologia, que a dominação social e política (e suas ideias) e diversas formas de sujeição social nem sempre têm um conteúdo ou componente de classe, de dominação de classe, qualquer que seja ela ou qualquer que seja o sistema de sociedade. A sujeição social que se sustenta na ideologia adquire formas muito variadas (que vão das discriminações, apoiadas em preconceitos, às exclusões sociais, provocadas por subtração de recursos, subordinações e negação de reconhecimento, passando por sofrimentos emocionais e psíquicos, produzidos por opressões, assédios, violências, repressões e coerções morais), atingindo diferentes indivíduos, sujeitos, grupos e classes.
A ideologia é responsável pela produção da alienação e do assujeitamento dos indivíduos a subjetividades impostas, instituições, saberes e tecnologias de produção de si, fazendo-os desconhecerem o que funda a realidade à sua volta e a realidade de si próprios. O que caracteriza a ideologia, no fundamental, é sua operação de discurso no sentido de negar a historicidade da realidade, produzindo sua naturalização e eternização.
Um dos importantes papéis do ensino, em todos os níveis, é possibilitar a formação do pensamento teórico-filosófico-científico que dote a todos de condições intelectuais, epistemológicos e metodológicas para o conhecimento da realidade, esta concebida de modo amplo: o mundo natural, o mundo social-histórico e o mundo da realidade subjetiva humana. Toda a produção do conhecimento teórico-filosófico-científico até aqui na história do pensamento humano voltou-se para esse fim. Produção de um modo de pensar sem neutralidade, pois já lhe é intrínseco ser a crítica e a desconstrução de todas as ideias (ideológicas) que circulam na sociedade que impedem o conhecimento da realidade. Ao ser um saber que torna possível a compreensão do que funda a realidade da sociedade e do mundo, assim como a realidade dos próprios indivíduos enquanto sujeitos sociais, o conhecimento é sempre crítica, esclarecimento, lucidez, desalienação e dessujeição. Não é por outra razão que, na história de nossas sociedades, o conhecimento conhece também uma história de sua perseguição, proibição, censura.
Assim, embora ciências possam ser, em diversos casos e ocasiões, veículos do discurso ideológico, no seu ensino e no do modo teórico-filosófico-científico de pensar não é a ideologia, no sentido próprio do termo, que impera, como pretende fazer acreditar o deputado (no uso do termo em seu projeto, com propósito, este sim!, ideológico!), mas inteiramente o seu contrário. Nas escolas e universidades, nós, os professores, educamos para o conhecimento da realidade, para a formação de cientistas, pensadores, pesquisadores e profissionais para diversos áreas de atuação, mas sempre com a ideia que estes devem agir para modificar condições de existência que degradem a pessoa humana, que constituam realidades de exclusão, subordinação, discriminação, sujeição.
Não são professores, nas escolas ou nas universidades, que praticam assédio ideológico, mas as mídias, as igrejas, as famílias, os discursos moral, religioso e político, ao difundirem ideias que negam o caráter construído da realidade e, por isso mesmo, o caráter revogável de todas as instituições sociais existentes. Tentando fazer crer a todos que a realidade do mundo, das sociedades e de nossas vidas são realidades naturais, universais, imutáveis, transcendentais, divinas, cabendo apenas nossa conformação ao instituído e ao existente, suas práticas tornam-se a de uma polícia dos comportamentos e pensamentos, agindo sobre crianças, jovens e adultos para a manutenção de preconceitos, hábitos e ideias que constroem, sustentam e reproduzem instituições e relações de sujeição ou dominação.
Ao pretender que aqueles que ensinam o pensamento crítico e reflexivo nas escolas e universidades estariam praticando “assédio ideológico”, com a ameaça de sua criminalização, o deputado potiguar Rogério Marinho age, como verdadeiro capataz da ideologia, em favor de uma educação acrítica, obscurantista, retrógrada e, por isso, impeditiva da formação de verdadeiros cientistas, estudiosos e profissionais capazes de contribuírem com a construção de uma sociedade, no Brasil, culturalmente avançada, politicamente emancipada e sem as misérias que nos sufocam.
Tomara seu projeto torne-se mais um na prateleira da Câmara Federal onde jaz a pilha do folclore parlamentar nacional!
*Fonte: Carta Potiguar - Alípio se Sousa Filho - Professor UFRN
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