RADIS 165
Poucas vezes um filme nos
ajuda a resgatar algum personagem tão necessário à conjuntura. Nos tempos
sombrios em que vivemos, “Nise - O coração da loucura” (do diretor Roberto
Berliner, lançado nacionalmente em abril) destaca a figura de uma das primeiras
médicas brasileiras, Nise da Silveira.
O filme recorta uma
parte relevante de sua biografia, mas não a esgota. Nise foi pioneira ao se
formar médica na Universidade Federal da Bahia, na qual ingressou como única
mulher entre 157 homens, com apenas 16 anos de idade. Se formou em 1926, com
uma tese sobre a criminalidade da mulher no Brasil. Em 1932, como médica
residente, foi morar no Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha. Em
1936, foi presa sob acusação de ter leituras comunistas em seu quarto do
hospital. Ficou presa pouco mais de um ano e, na prisão, fez amizade com
Graciliano Ramos.
Ficou afastada e viveu
quase em clandestinidade até 1944, quando foi readmitida no Engenho do Dentro.
Foi lá que ela foi apresentada aos “novos” métodos de tratamento: lobotomia,
coma insulínico e electroconvulsoterapia. Nise se negou a praticá-los e iniciou
em um pequeno quarto a terapia ocupacional. Nise da Silveira foi pioneira no
tratamento de pacientes asilados com graves transtornos mentais por meio da
arte em suas variadas formas. Fez isso no Rio de Janeiro, no início do século
20, antes dos movimentos antimanicomiais internacionais — por exemplo, de Laing
e Basaglia.
Nise buscou seus
primeiros pacientes entre aqueles considerados intratáveis pelo sistema asilar
e os pôs no centro de suas preocupações. Tinha uma atenção e um respeito imenso
por cada uma daquelas vidas. Utilizou seus contatos pessoais com o mundo da
crítica artística para tirar do silenciamento esses novos pintores e
escultores. Levou suas pinturas ao outro lado do Atlântico, conseguiu
interessar o próprio Jung em suas pesquisas sobre as relações entre arte e
inconsciente. Os auxiliares eram pessoas com instrução fundamental e Nise se
encarregou de sua formação.
Em 1952, criou o Museu
de Imagens do Inconsciente, para transformar em um centro de estudo e pesquisa
o trabalho de artes que já a motivavam intensamente. A colaboração com artistas
foi fundamental para todo o desenvolvimento posterior1. Atuava em várias
frentes: no Museu de Imagens do Inconsciente; na Casa das Palmeiras (espécie de
prenúncio dos Centros de Atenção Psicossocial) e no grupo de estudos de Jung
que fundou.
Faltou à Nise
interpretada no filme por Gloria Pires a fragilidade comovente da Nise
verdadeira, que vemos só no trecho de documentário final e que ressalta ainda
mais sua força, sua fibra e seu brilhante humor. Os que a conheceram dizem que
era uma pessoa que causava vivo impacto. Sabia ser acolhedora e hospitaleira,
vivia rodeada de gatos. E acreditava que estes adivinhavam a personalidade das
pessoas — detestava pessoas avessas aos animais. Viveu muito modestamente e
sempre se definiu como uma servidora pública.
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