RADIS (Bruno Dominguez) - O vestido ainda está guardado no armário. Uma recordação daquele
26 de outubro, quando Helena apareceu pela primeira vez para seus colegas de
Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na turma do segundo
semestre de 2013 não havia quem ignorasse os sinais de que ela estava a
caminho. Os fios de cabelo vinham crescendo. As unhas ganharam esmalte
colorido. As roupas masculinas foram trocadas por um visual andrógino. Roberto
e outros amigos próximos sabiam que a chegada de Helena era iminente, mas ninguém
mais do que ela própria esperava o dia de se libertar de um gênero ao qual
nunca sentiu pertencer. “Eu sempre achei que não me encaixava no meu corpo, mas
não é fácil reconhecer que se é uma pessoa trans”.
Na cidade de Várzea Paulista, na região de Jundiaí (SP),
transgênero era uma palavra totalmente desconhecida 22 anos atrás. Hoje, não se
pode afirmar que lá e em grande parte do país se entenda que algumas pessoas
não se encaixam no gênero imposto por seus corpos — masculino ou feminino — e
lutam para serem reconhecidas social e legalmente de acordo com outro gênero.
“Desde criança eu desejei ser menina e isso foi se estendendo ao longo da minha
vida até a adolescência”, descreve Helena, unhas vermelhas sobre o vestido de
renda preto.
“Vivi uma angústia terrível quando a puberdade chegou. Era
doloroso ver as mudanças acontecendo no corpo das minhas amigas de escola
enquanto minha voz engrossava, os seios não cresciam, me enchia de pelos. Eu
sonhava todas as noites me tornar uma garota, que minha genitália desaparecesse
e que eu fosse realmente feliz. Mas como nunca pude verbalizar isso, o tempo
passou e esse segredo ficou guardado em mim. Naquela época eu mal sabia qual a
diferença entre um transgênero e um gay”.
A doutora em Sociologia Berenice Alves de Melo Bento, autora do
verbete Transexualidade no Dicionário Feminino da Infâmia (Editora Fiocruz),
define a palavra como uma ”experiência de trânsito entre os gêneros que
demonstra que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas
corpóreas”. Ela ressalta que, assim como aconteceu com Helena, esse processo é
marcado por medos. “As dúvidas ‘Por que eu não gosto dessas roupas? Por que
odeio tudo que é de menino? Por que tenho esse corpo?’ levam os sujeitos que
vivem em conflito com as normas de gênero a localizar em si a explicação para
suas dores”.
O conflito fez com que a estudante de Medicina acreditasse ser
um homem gay, até finalmente perceber em 2013 que não se encaixava naquele
universo. “Um vazio começava a se instalar em mim. A heterossexualização
machista do mundo homossexual me impedia de aparentar minha feminilidade”. O
vazio foi ficando cada vez maior. Helena se sentia uma fraude. Então, procurou
amigos, depois um psicólogo da própria faculdade em que estuda e ainda
materiais sobre pessoas transgênero. “Muitas das histórias contadas eram
perfeitamente compatíveis com a minha. Eu seria transgênero? Não podia ser, eu
não queria admitir!”.
Na fase mais dolorosa do processo de transição, em 2015, a
universitária sofreu com crise de pânico e depressão. Na saída de uma aula
prática de microbiologia, buscando amparo em uma amiga, chegou ao ponto mais
frágil: “Thaís, eu tenho medo de sucumbir”. Mas daí ganhou força para abrir
caminho até ser reconhecida e chamada de Helena. Contou com o auxílio de uma
psiquiatra, também da UFRJ. Começou a hormonização, ou terapia com hormônios,
para destacar os traços femininos. Trocou todo o guarda-roupa.
Graças à aprovação pela universidade de uma norma para que
transgêneros, travestis e transexuais utilizem em registros acadêmicos seus
nomes sociais, ela é Helena também no diário de aula e no sistema de gestão
acadêmica. Os outros documentos e as outras mudanças visuais ficam para depois.
“Quero o meu corpo feminino, mas não vou fazer loucuras. Tenho consciência da
minha origem. Nunca serei uma mulher cisgênero [pessoa cujo gênero é o mesmo
que aquele designado a ela no nascimento], serei sempre uma mulher trans”. Quem
tem mais dificuldade de chamar Helena pelo nome que escolheu é sua mãe. Não por
preconceito, mas por força do hábito. “Eu disse a ela: me chama de ‘amor’.
Porque amor não tem gênero”.
Mesmo contando com o respeito da família e dos colegas da
faculdade, a estudante não se engana de que esta seja a realidade de todos os
transgêneros. “Sou uma privilegiada em uma sociedade hipócrita”, conclui,
ciente da discriminação a qual está sujeita a grande maioria das pessoas como
ela. Hoje, está protegida por uma universidade de ponta. Amanhã, por um diploma
respeitado. Sobre os meses como Helena, ela já avalia que “ser garota é muito
legal”. Mas instantaneamente corrige a própria avaliação: “Muito legal é ser
quem você sempre quis ser”.
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