Os Anos 80 foram terríveis ao movimento gay no Brasil e no mundo. A AIDS se mostrou a peste negra do século 20 e não à toa dizimou uma população já sem esperança naquela década. Um banho de água fria para um gênero que se firmava socialmente surfando na onda libertária e na revolução feminista dos anos 70.
Se os grandes centros do país já estavam repletos de casas noturnas exclusivas ao público gay na década de 70, em Natal eram raras e, digamos, camufladas, como se fossem algo proibido. E foi mesmo no abrir da década de 80, tão cheia de cicatrizes, que a boate Equus – depois chamada de Broadway – se tornava pioneira como primeira casa do gênero em Natal (alguns apontam o restaurante Saci, vizinho ao Palácio da Justiça, que tinha lá um público gay).
A Equus estava fincada na rua Felipe Camarão, onde funciona atualmente a Potylivros, na Cidade Alta. A casa foi aberta pelo hoje produtor do Som da Mata, Marcos Sá de Paula e Ângelo Burrão, famoso por outras casas noturnas de Natal, como o 744 e as boates Liberté e La Prision, esta última no Centro de Turismo.
“Ângelo tinha uma boate impedida de inaugurar por falta de alvará devido briga com vizinhos. Eu morava em Recife e dirigia o Café Concerto Misty, uma boate gay de lá. Vinha a Natal poucas vezes e numa delas Ângelo me perguntou se eu achava viável abrir uma boate gay em Natal. Falei que só conhecia o Libertê, do próprio Ângelo. Mas numa dessas vindas a Natal me chamaram para festa no Círculo Militar, na Praia do Forte. Menino, era fresco saindo pelo ladrão. Então falei para ele que público tinha. E Ângelo me propôs montar a boate e eu assumir o comando”, relembra Marcos Sá.
Passado um ano e meio de funcionamento, Marcos Sá “se encheu” da noite e entregou a gestão a Moacyr “do Postinho”, que já tinha comprado a Ângelo a estrutura da casa. Foi por essa época que Lula Belmont, então com 25 anos, passou a trabalhar como garçom da boate.
“ORGIA GAY NA FELIPE CAMARÃO”
Lula já tinha experiência em casas noturnas na Cidade Alta e Ribeira quando chegou à Broadway. E por esse lastro na noite, lhe foi perguntado sobre a casa receber os ensaios do concurso Mr. Gay, que aconteceria no Palácio dos Esportes, e ele foi enfático: “Melhor não trazer esses 20 ou 30 candidatos porque depois do concurso vai atrair gente demais pra cá e pode virar baderna porque não é o público que normalmente frequenta a boate”.
O concurso aconteceu num sábado de 1982. Cerca de três mil pessoas lotaram o Palácio dos Esportes. E fim da festa, já madrugada, milhares de pessoas migraram para a rua onde funcionava a Broadway e uma série de barzinhos, como o Barbaridade e outros. E o alerta de Lula começou a soar nos ouvidos de quem não o escutou.
Perto de 1h da manhã a rua Felipe Camarão estava completamente tomada. Às 2h já faltava bebida na Broadway. Nem água tinha em qualquer bar da rua. “Fechamos a boate bem antes do horário normal e fui dormir. À época eu morava no Winbledon, um dos primeiros prédios para moradia na cidade, perto do hoje Potengi Flat. Quando acordo e saio pra rua, o rapaz da cigarreira me pergunta: ‘Já viu a Tribuna e o Diário de hoje?’. Na primeira página do Diário e numa boa parte da capa da Tribuna tinha algo como ‘Orgia gay na Rua Felipe Camarão’. E no subtítulo falava em tóxico, garrafa no chão, seringa jogada no terreno ao lado da boate. Tudo montagem!”.
Lula suspeita da notícia montada porque fazia três meses que ele tinha arrendado a boate e o proprietário queria o prédio de volta. “Sei que depois da notícia, quando foi quinta-feira, apareceram três pessoas. Sexta e sábado nada. Ou só gente de fora, de João Pessoa, Recife, interior do estado, alheios ao acontecimento. Aí promovemos uma festa à fantasia chamada ‘Um dia sonhei que era assim’. Panfletamos pela cidade porque era assim a divulgação na época. Tudo para reverter o quadro. Contratamos o DJ Junior Natal, um dos pioneiros da cidade. À época era caríssimo DJ porque era novidade. Ele tinha amigo em Nova York que enviava fitas cassete pra ele e tínhamos a chance de tocar aqui o mesmo som que boates dos grandes centros do país tocavam”.
Resultado: a boate lotou novamente. Mas Lula permaneceria na Broadway apenas mais seis meses. Segundo ele, o dinheiro arrecadado não compensava o esforço e o aluguel do ponto. Foi quando resolveu abrir o Vice-Versa e marcar história na noite de Natal.
ATLETA DESTACADO NO VÔLEI
Antes de chegarmos à história de Lula a partir do Vice-Versa, voltaremos até o ano de 1957, quando Luiz Antônio Belmont nasceu, na então distante Serra de São Bento. O pai Severino da Costa Belmont, o Costinha, mantinha três famílias, sendo as outras duas em São José do Campestre e Araruna, na Paraíba.
Costinha faleceu quando Lula tinha apenas seis anos de idade. Foi quando a família de dez irmãos, de pai e de mãe, veio embora para Natal. Na partilha da herança, cada família ficou com suas casas e a mãe de Lula Belmont, Germina Bezerra, herdou a gestão dos correios de Serra de São Bento.
A primeira residência em Natal foi na rua Meira e Sá, no Barro Vermelho. Por lá ficou até os 12 anos. Nesse período estudou no colégio público Jerônimo Gueiros, no mesmo bairro. Quando Potilândia foi inaugurado – o segundo conjunto habitacional de Natal, depois da Cidade da Esperança –, a família se mudou para lá. “À época tinha o critério de só receber famílias com pelo menos dez filhos. Então foi fácil recebermos a casa”.
Fez o ginasial e o científico no ainda prestigiado Colégio Atheneu. Mesmo adolescente, trabalhava na lanchonete Roda Viva, num ponto alugado pela família ao cunhado de Lula, situado por trás da Assembleia Legislativa, hoje em frente ao Bar de Nazaré e onde mais tarde se transformaria no Vice-Versa.
Nessa época de estudante e comerciante, Lula também jogava vôlei, tendo integrado a seleção do Rio Grande do Norte, entre os anos de 1975 a 1978 e teve oportunidade de conhecer diversas cidades do país participando de jogos.
Em 1978, aos 21 anos, já pertencia ao quadro técnico da secretaria de educação do estado, quando entrou por indicação de amigos – hoje Lula é aposentado como professor.
Anos mais tarde, integrou a primeira turma do curso de Educação Artística na UFRN, e o que poderia ter direcionado seu destino profissional foi interrompido pelo que realmente construiu seu futuro: o trabalho na noite natalense. Esse chamado foi natural. O movimento sociocultural da época, fim dos anos 70, se dava pelo centro da cidade. E pela lanchonete passava toda sorte de gente, como proprietários de casas noturnas.
Foi quando conheceu Arruda Sales e em 1980 passou a trabalhar com ele no Frenesi Café Teatro, na então movimentada rua Doutor Barata, na Ribeira. Esse Café Teatro manteve dois espetáculos de teatro de revista em cartaz por dois anos ininterruptos, fato inédito na história da cidade.
Lula trabalhava no Frenesi, de quinta a sábado à noite e na secretaria de Educação do Estado, todos os dias à tarde. Mas em 1982, o Frenesi fechou. Foi quando Lula chegou à Broadway e, dois anos depois, teve a ideia de abrir seu próprio ponto comercial.
VIVE-VERSA: OITO ANOS DE PIONEIRISMOS
O Vice-versa marcou época em Natal. Começou como bar, em 1984. Funcionava de terça a sábado sempre com casa cheia e sem hora para acabar. “Praticamente se amanhecia todos os dias por lá. Nessa época o Centro da Cidade tinha outro movimento, outro aspecto. Pessoas que trabalhavam em bancos e repartições frequentavam os bares e movimentava o comércio noturno”, rememora Lula.
A casa mantinha a estrutura de residência, com a divisão de cômodos e material original de uma casa antiga, da velha família Procópio. Tinha oito metros de frente para a rua Vigário Bartolomeu, e se estendia por 30 metros de fundo, até a Assembleia Legislativa. O charme estava na decoração com quadros enormes de mitos das artes, como Charles Chaplin, Greta Garbo e etc.
O clima no Vice-Versa – nome sugerido por Marcos Sá – era todo cultural. Além da decoração havia espaço para galeria de arte e até para apresentações de teatro de bolso, aberto às segundas-feiras para 60 pessoas. Foi nele que estreou o espetáculo marcante de Véscio Lisboa, O Anjo Maldito, em cartaz por seis meses.
A criatividade dava o tom do Vice-Versa. Na época da efervescência política com a retomada do estado democrático e a nova república (com letra minúscula, mesmo), o cardápio tinha nome de políticos. Depois migrou para artistas locais.E com dessas simples ideias conquistava a simpatia do público e do artista.
Tinha também os pequenos projetos. Um deles, chamado Quinta Arte prestava homenagem às artes potiguares, com uma semana para cada expressão das artes e entrega do Troféu Caju a destaques. Aos domingos o movimento era todo do público rocker com reunião de bandas e possivelmente o primeiro encontro de bandas de heavy metal de Natal. “Era tão novidade que eu mesmo desconhecia o público e fiquei abismado quando começaram a chegar. Não pensei que Natal tivesse tanto roqueiro”, brinca Lula.
Um concurso com a novidade do karaokê foi sucesso total e justo na época em que o Vice-Versa formava fila na entrada. “Só tinha acesso se saísse alguém. Era uma loucura”. E o bar soube surfar nas discussões do momento. Mesmo a questão da AIDS foi tema de debates. “Promovíamos debates políticos, temáticos. Um deles foi sobre a AIDS, quando trouxemos o hoje presidente da Unimed, Antônio Araújo para falar da doença”.
A segmentação do Vice-Versa para um público predominantemente homossexual foi algo natural, na visão de Lula. “Promovemos também o concurso Mr. Vice-Versa, só de rapazes que desfilavam. Isso rendia muita mídia nos jornais da época. Já existiam As Kengas no carnaval, criação nossa. Mas nunca curti gueto. Eu gostava da mistura do público frequentador do Vice-Versa. Se enxergasse pelo lado mercadológico, não teria feito. A segmentação é ruim para um comércio. Mas foi algo natural. E assim começou a atrair o público gay, sobretudo no turno da madrugada. Daí passamos para a boate, por volta de 1988”.
A boate funcionava na parte de trás do Vice-Versa, de quinta a sábado. O prédio já pertencia aos irmãos Lula e Antônio Belmont desde 1987. Mas os anos na noite eufórica do Vice-Versa cansaram Lula Belmont, além de outros fatores menores, como uma demora arrastada de reforma, que empurraram o produtor a fechar a casa em 1992.
Outro motivo foi o início da decadência do Centro Histórico. “A Cidade Alta já tomava outro forma. Já não tinha o mesmo movimento de antes. Foi o fim”, lamentou Lula.
Outras boates gays proliferaram por Natal após o fim do Vice-Versa na década de 90. A Vogue, Avesso Clubber, Feitiço, Crystal Club… No local onde funcionou o Vice-Versa, anos mais tarde, abriu o Giga Byte, com espaço, de certa forma pioneiro, para apresentação de transformistas da cidade.
AS KENGAS – 34 ANOS DE IRREVERÊNCIA
Foi ainda como garçom da Broadway, que Lula Belmont fundou o bloco As Kengas, em 1983, numa época berço de reativação do carnaval de Natal, com sucesso da Banda Gália e fundação de inúmeros blocos e troças carnavalescas.
Mas As Kengas se tornou ícone da irreverência e sucesso já no primeiro ano de desfile. “Iniciamos com uma charanga e média já de 200 a 300 pessoas. Entre oito e dez kengas participaram do desfile e depois rodavam o chapéu para pagar as roupas e a estrutura do desfile. O resultado da disputa foi um empate entre Joe Maravilha e Luciano Moraes.
Passados 34 anos, As Kengas se transformou em um dos maiores blocos do carnaval de Natal, arrastando milhares de pessoas e sempre com presença de celebridades que entram no clima de irreverência. Para este ano, com decoração “Made in China”, Maria Alcina fará o barulho do bloco no domingo de momo, no Centro Histórico.
PRODUÇÃO CULTURAL – A MISSÃO
Ainda no Vice-Versa Lula tinha iniciado trabalho de produção cultural voltado ao teatro. Talvez o primeiro espetáculo tenha sido o A Missão, com os atores Fernando Athaíde, João Marcelino e Marcos Bulhões, que venceu mais de 20 festivais Brasil afora. A peça tratava da Revolução Francesa. “Fernando Athaíde venceu todos os festivais que participou, como melhor ator, e a peça ainda levava nas categorias de melhor iluminação… melhor tudo”.
Um dos espetáculos, A Bela no Reino da Fera, fez tanto sucesso que Lula colocou em cartaz no disputado Teatro Alberto Maranhão, à época dirigido por Carlos Nereu.
Com o Vice-Versa fechado, Lula prosseguiu na produção de espetáculos infantis e espetáculos teatrais para adultos, além da festa carnavalesca anual com As Kengas. “Iniciei a onda de espetáculos numa segunda-feira no TAM. Coisa inédita na época. E eu conseguia meia casa só com shows locais. Até hoje pouca gente tem coragem”, se orgulha.
BARDALLOS ETERNO
O Bardallos deveria ter se iniciado ainda no prédio do Vice-Versa, sendo um boteco de calçada com hora marcada para fechar à meia noite. Após fechado, quem quisesse continuar entraria na boate. Essa era a ideia para o Vice-Versa antes de fechar.
Ainda com produção de espetáculos, Lula enxergou um ponto comercial de fachada estreita e cumprimento alongado, na rua Gonçalves Lêdo, um local para reviver seus tempos de bares noturnos. Lá funcionava o histórico Abech Pub, do comerciante Pedro Abech, palco para surgimento de muitos artistas, a exemplo de Khrystal. Mas naquele ano de 2005, o local estava fechado há mais de ano e Lula decidiu alugar.
“Abri o Bardallos Comida e Arte sem divulgação. Achei que o bar teria que acontecer por si próprio. E como não estava mais afim de amanhecer dia em bar, tive a ideia do badalo do sino a meia noite para fechar o bar. E assim permaneceu por cinco anos até que o prédio foi vendido”.
Coincidentemente nessa época, Lula viu o que nunca tinha visto mesmo escancarado a sua frente todos os dias. “Passava e nunca tinha percebido essa casa. E coincidiu de o proprietário vendê-la na época que o Bardallos fechou. Negociei, comprei e transferi o Bardallos pra lá. Procurei manter o mesmo clima do bar. E a clientela permaneceu. Aprendi que não se mexe bruscamente numa estrutura de bar ou se perde cliente”.
Hoje o Bardallos é point da vida boêmia e cultural do Centro Histórico de Natal. Ótimos shows acontecem pelo menos três vezes durante a semana, via de regra com o que há de melhor na música potiguar. E projetos culturais também encontram no local o espaço para desaguar mais arte ao público sempre presente.
Mas o velho guerreiro de 60 anos está cansado. “Estou morando em hotel aqui próximo faz um ano e meio. Melhor coisa que eu fiz. Aluguei meu apartamento e minha ideia depois de mais uns três anos de trabalho é viajar mais. Passar um mês em São Paulo, um mês em Florianópolis, onde tenho família… Tudo pago com o aluguel da minha casa. Mas o Bardallos permanece. Agora, é difícil. O que segura mais a onda (as finanças) aqui é o serviço de almoço. Mas é difícil parar; sou meio conservador com essas coisas”.
FOTO DE CAPA: ALEX GURGEL
Fonte: PAPO Cultura
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