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domingo, 26 de março de 2017

Hierarquia de opressão: sobre o lugar da luta

Se o debate é bom para o diálogo e o avanço da luta, o mesmo não se pode dizer da disputa interna que pode enfraquecê-la

Audre Lorde, uma das mais instigantes pensadoras do feminismo negro, afirmou em um texto importantíssimo que não há hierarquia de opressão. A luta contra a opressão deve ser de todos. E se é de todos ninguém deve ser apagado nessa luta.

A própria ideia de luta implicaria a de solidariedade contra a opressão.

Atualmente, no entanto, acontece algo curioso. É como se as lutas tivessem entrado em conflito no momento em que cada um parece tratar a a opressão sob a qual padece como se ela fosse a única e esquecesse, de algum modo, a opressão do outro. Nesse momento, podemos nos perguntar, mesmo que soe indelicado: quem esquece a opressão, não se torna ele mesmo um opressor? Vale a provocação em um momento no qual é preciso pensar melhor sobre certas filigranas políticas decisivas para a lógica da luta.

Tendo isso em vista, podemos tentar trabalhar uma das questões mais graves que as lutas políticas enfrentam nesse momento: a da sua própria divisão. Uma pergunta precisa ser colocada: pode existir uma luta dividida? Ou melhor, que tipo de luta é a luta dividida? Qual seu alcance? O mesmo podemos dizer sobre o campo da esquerda como lugar onde se organiza, historicamente, a luta contra a opressão de classe. Podemos nos perguntar se pode haver uma esquerda dividida? Se a divisão da esquerda, assim como a da luta, não implicaria sua própria destruição?

Por último, o que vem sendo chamado de “divisão da esquerda” foi produzido pela própria esquerda, ou pela direita? Quem realmente ganha com essa divisão?

Um conceito de luta

Talvez haja certa confusão em torno do conceito de luta. Na intenção de refletir sobre ela, podemos começar por definir luta como o combate contra um inimigo opressor, contra forças opressoras. A luta não é uma disputa apenas. Diferentemente da guerra, busca-se por meio da luta a inclusão, a igualdade, a liberdade. É que a luta é sempre construtiva, seu desejo não é o de destruir coisa alguma.

Luta implica esforço, há nela algo de heroísmo. A luta é potente quando se trata de uma ação conjunta em nome de um ideal maior, de melhores condições de vida para todos aqueles que lutam (e também os que não lutam e que se beneficiam da luta). Uma luta impotente seria aquela que teria perdido isso de vista. Já não seria bem uma luta.

De qualquer modo, quando usamos o termo luta, queremos falar de um bom afeto, de algo que nos anima, que inspira e instiga. Luta é o nome próprio da ação política. Ao mesmo tempo, o termo luta está no mundo da vida. É um termo bonito, usado por ativistas, mas também por trabalhadores em seu sentido mais simples. Cidadãos que dizem que estão “na luta”, que estão na “batalha” dão um conceito positivo ao esforço que faz parte do viver.

Isso é político. O que nos faz pensar em algo que aprendemos com o feminismo e que pode ser estendido a outras lutas. Quando dizemos “mulher, você é feminista e não sabe”, também podemos dizer, “cidadão, cidadã, você é trabalhador e não sabe”. E isso muda muita coisa em relação à consciência de si.

*Artigo de Marcia Tiburi
Revista Cult 

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