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segunda-feira, 6 de junho de 2016

IDENTIDADE TRANS (História de quem luta para ser reconhecido de acordo com sua identidade de gênero)

RADIS (Bruno Dominguez) - O vestido ainda está guardado no armário. Uma recordação daquele 26 de outubro, quando Helena apareceu pela primeira vez para seus colegas de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na turma do segundo semestre de 2013 não havia quem ignorasse os sinais de que ela estava a caminho. Os fios de cabelo vinham crescendo. As unhas ganharam esmalte colorido. As roupas masculinas foram trocadas por um visual andrógino. Roberto e outros amigos próximos sabiam que a chegada de Helena era iminente, mas ninguém mais do que ela própria esperava o dia de se libertar de um gênero ao qual nunca sentiu pertencer. “Eu sempre achei que não me encaixava no meu corpo, mas não é fácil reconhecer que se é uma pessoa trans”.

Na cidade de Várzea Paulista, na região de Jundiaí (SP), transgênero era uma palavra totalmente desconhecida 22 anos atrás. Hoje, não se pode afirmar que lá e em grande parte do país se entenda que algumas pessoas não se encaixam no gênero imposto por seus corpos — masculino ou feminino — e lutam para serem reconhecidas social e legalmente de acordo com outro gênero. “Desde criança eu desejei ser menina e isso foi se estendendo ao longo da minha vida até a adolescência”, descreve Helena, unhas vermelhas sobre o vestido de renda preto.

“Vivi uma angústia terrível quando a puberdade chegou. Era doloroso ver as mudanças acontecendo no corpo das minhas amigas de escola enquanto minha voz engrossava, os seios não cresciam, me enchia de pelos. Eu sonhava todas as noites me tornar uma garota, que minha genitália desaparecesse e que eu fosse realmente feliz. Mas como nunca pude verbalizar isso, o tempo passou e esse segredo ficou guardado em mim. Naquela época eu mal sabia qual a diferença entre um transgênero e um gay”.

A doutora em Sociologia Berenice Alves de Melo Bento, autora do verbete Transexualidade no Dicionário Feminino da Infâmia (Editora Fiocruz), define a palavra como uma ”experiência de trânsito entre os gêneros que demonstra que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas”. Ela ressalta que, assim como aconteceu com Helena, esse processo é marcado por medos. “As dúvidas ‘Por que eu não gosto dessas roupas? Por que odeio tudo que é de menino? Por que tenho esse corpo?’ levam os sujeitos que vivem em conflito com as normas de gênero a localizar em si a explicação para suas dores”.

O conflito fez com que a estudante de Medicina acreditasse ser um homem gay, até finalmente perceber em 2013 que não se encaixava naquele universo. “Um vazio começava a se instalar em mim. A heterossexualização machista do mundo homossexual me impedia de aparentar minha feminilidade”. O vazio foi ficando cada vez maior. Helena se sentia uma fraude. Então, procurou amigos, depois um psicólogo da própria faculdade em que estuda e ainda materiais sobre pessoas transgênero. “Muitas das histórias contadas eram perfeitamente compatíveis com a minha. Eu seria transgênero? Não podia ser, eu não queria admitir!”.

Na fase mais dolorosa do processo de transição, em 2015, a universitária sofreu com crise de pânico e depressão. Na saída de uma aula prática de microbiologia, buscando amparo em uma amiga, chegou ao ponto mais frágil: “Thaís, eu tenho medo de sucumbir”. Mas daí ganhou força para abrir caminho até ser reconhecida e chamada de Helena. Contou com o auxílio de uma psiquiatra, também da UFRJ. Começou a hormonização, ou terapia com hormônios, para destacar os traços femininos. Trocou todo o guarda-roupa. 

Graças à aprovação pela universidade de uma norma para que transgêneros, travestis e transexuais utilizem em registros acadêmicos seus nomes sociais, ela é Helena também no diário de aula e no sistema de gestão acadêmica. Os outros documentos e as outras mudanças visuais ficam para depois. “Quero o meu corpo feminino, mas não vou fazer loucuras. Tenho consciência da minha origem. Nunca serei uma mulher cisgênero [pessoa cujo gênero é o mesmo que aquele designado a ela no nascimento], serei sempre uma mulher trans”. Quem tem mais dificuldade de chamar Helena pelo nome que escolheu é sua mãe. Não por preconceito, mas por força do hábito. “Eu disse a ela: me chama de ‘amor’. Porque amor não tem gênero”.


Mesmo contando com o respeito da família e dos colegas da faculdade, a estudante não se engana de que esta seja a realidade de todos os transgêneros. “Sou uma privilegiada em uma sociedade hipócrita”, conclui, ciente da discriminação a qual está sujeita a grande maioria das pessoas como ela. Hoje, está protegida por uma universidade de ponta. Amanhã, por um diploma respeitado. Sobre os meses como Helena, ela já avalia que “ser garota é muito legal”. Mas instantaneamente corrige a própria avaliação: “Muito legal é ser quem você sempre quis ser”.

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