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terça-feira, 29 de abril de 2014

CULT: FREUD E O APARELHO DE LINGUAGEM - ENSAIO

Maria Rita Salzano Moraes

Durante muito tempo inadequadamente considerado “pré-psicanalítico” e, por consequência, de menor interesse para a psicanálise, Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (Freud [1891] 2013), finalmente é publicado no Brasil. A tradução direta do alemão realizada por Emiliano de Brito Rossi para a Coleção Obras incompletas de Sigmund Freud (ed. Autêntica) traz-nos, em uma leitura rigorosa, os primórdios da reflexão crítica de Freud sobre linguagem, com afirmações e propostas desconcertantes até para os dias atuais.

Mesmo sem possuir uma pesquisa própria sobre o assunto, Freud decide, em 1891, investigar a literatura sobre as afasias (Wernicke, Broca, Meynert, entre outros) para introduzir um avanço na discussão da época.

Na literatura médica sobre a afasia, até 1891, a faculdade da linguagem articulada estava localizada nos lobos anteriores do cérebro. Broca e Wernicke definem a correlação precisa das perturbações da linguagem com regiões determinadas no cérebro: enquanto as imagens mnêmicas dos movimentos da linguagem são conservadas no centro motor (área de Broca), as imagens sonoras são armazenadas no centro sensorial (área de Wernicke). As lesões ocorridas em um desses centros resultam, respectivamente, em afasia motora ou sensorial. Além da afasia decorrente de uma lesão central, Wernicke propõe ainda uma afasia de condução, a parafasia, resultante da lesão nas vias de associação entre os centros.


Nesse ensaio, Freud percorre e analisa inúmeros casos de perturbações da linguagem descritos segundo a concepção de autores cujo trabalho ele toma como ponto de partida e analisa resultados de casos cujos sintomas, além de se revelarem incompatíveis com a teoria proposta por esses autores, demonstram a impossibilidade de uma explicação baseada inteiramente na hipótese da localização anatômica. A partir dos casos em que não se podem explicar os distúrbios da linguagem localizando pontualmente o correspondente fisiológico da representação no cérebro, Freud os avalia como resultado de complexos processos associativos que se estendem além dos assim chamados centros da linguagem.

Palavra, ponto nodal

Ao propor a divisão da palavra em representação de palavra e associações de objeto, Freud retira a representação de sua unidade psicológica e a transforma em uma entidade lógica e dialética. A representação deixa de representar o objeto, para se tornar a diferença entre séries de processos. Não se trata, portanto, da diferença entre entidades previamente existentes, mas de um processo de diferenciação como princípio de constituição desse aparelho.

À palavra corresponde uma associação de imagens mnêmicas auditivas, visuais e motoras e seu significado se constrói na articulação da imagem acústica da representação de palavra com as imagens visuais das associações de objeto. As associações de objeto, por sua vez, não constituem, para Freud, o objeto ou a coisa externa, a referência, mas sinais de uma percepção difusa. Porém, o fundamental dessa proposta é que à palavra é dada a possibilidade (por sua constituição complexa) de ser sempre um ponto nodal, e facilitar o deslocamento no caminho das associações do falante, proporcionando os disfarces da ambiguidade e da condensação.

Não existe, então, um campo da linguagem antes de haver linguagem, ou que não seja construído por linguagem. Não há, portanto, nessa concepção do aparelho de linguagem, nada da ordem da mecânica de uma causalidade. Freud já está trazendo uma dinâmica da simultaneidade na constituição desse aparelho. As diferenças na associação desses elementos visuais, auditivos e motores constituem as representações. É importante lembrar que a representação não pode ser, na proposta de Freud, anterior à associação. A representação não é uma unidade constituída que se associa a outras unidades por somação. A lei da associação, ou sua razão, é a simultaneidade. Ao dizer que “não podemos ter sensação alguma sem associá-la imediatamente” (p. 80), Freud está passando a limpo toda a teoria da percepção, da associação, para dizer que não há nada fora da linguagem.

Maria Rita Salzano Moraes
é docente do Departamento de Linguística Aplicada da UNICAMP

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