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sexta-feira, 28 de junho de 2013

A POPULAÇÃO EM SEGUNDO PLANO: Processo de expulsão dos moradores de seus territórios em favor de intervenções urbanas desfaz redes de relações e requer comunidades fortes e organizadas para resgatar seus direitos

Dona Maria Grinauria da Silva tem 87 anos e há mais de 40 mora na comunidade do Coque, a 2,5 quilômetros do centro do Recife (PE) e a 3,5 quilômetros do bairro turístico de Boa Viagem, um dos de maior renda da capital pernambucana. Em abril, a casa de dona Maria foi derrubada para dar passagem a uma rua que vai cortar a comunidade. Os R$ 4 mil recebidos de indenização “deram para nada”, como contou à reportagem da Radis, no dia em que fazia aniversário. Não havia bolo ou festa. O destino seguinte de dona Maria foi a palafita, na beira do mangue. “Quando chove, entra água em tudo que é lugar. O que eu quero mesmo é ir para um conjunto habitacional”, espera. E completa: “Minha filha, veja se isso é vida”.

O processo de expulsão de pessoas como dona Maria de seus territórios, sem que lhes seja assegurado  interferir na definição do próprio destino, resulta de um modelo no qual o interesse econômico vem se sobrepondo ao do bem comum para pautar a vida nas cidades. Os exemplos são muitos e em vários pontos do país. Radis recolheu alguns, em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, onde encontrou pessoas e comunidades impactadas pela especulação imobiliária, a industrialização desordenada e a realização de grandes eventos, entre outras iniciativas levadas à frente à custa da saúde e, muitas vezes, da vida de quem estiver no caminho. “Problemas ambientais são maiores em regiões com maior desigualdade social e se expressam de forma mais aguda quando há déficit de democracia dessa sociedade e do nível de organização das populações mais vulneráveis”, analisa o pesquisador Marcelo Firpo Porto (leia a entrevista), do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Ensp/Fiocruz. “As vozes dessas populações são tidas como de pouco conhecimento técnico para dizer que os problemas ambientais ou de saúde são relevantes”, aponta.


Modernização excludente

paulo sabrozaO desenvolvimento urbano, no entanto, pode ser integrador e não excludente, como explica o pesquisador Paulo Sabroza, do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Ensp/Fiocruz. “A inclusão das populações nos projetos urbanos é resultado de um desenvolvimento orgânico, que acontece de dentro para fora”, afirma. Segundo ele, a ausência nesse processo de uma gestão pública competente e responsável exclui parte da população e leva a tensão, fragmentação, desigualdade, conflitos sociais violentos e mal estar. A maior parte dos projetos urbanos no Brasil, observa Sabroza, são voltados à modernização. “Desenvolvimento é o que vem de baixo para cima em função das forças da sociedade e sem vetores externos”, diz Paulo, coordenador técnico do Plano de Monitoramento Epidemiológico da Área de Influência do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí (RJ). Segundo o pesquisador, o vetor externo pode ser um agente político ou econômico, de determinado segmento ou classe social, ou um projeto imobiliário ou industrial, que pode alterar o modelo de uso do solo.

Sabroza explica que a Copa do Mundo de 2014, por exemplo, foi um disparador externo, o argumento que consolidou determinado projeto imobiliário, especialmente, no Rio de Janeiro.


Sem debate prévio

O pintor de paredes Rosinaldo Luis de Mendonça, desempregado, vindo há 28 anos da Paraíba para a capital fluminense, conhece as dimensões e nuances desse processo. No último Natal, foi avisado de que sua casa seria demolida. No rolo compressor das obras de mobilidade da Copa do Mundo, outras 66 casas e pequenos negócios da comunidade do Tanque, em Jacarepaguá, zona oeste da cidade, onde vive, viriam abaixo. A primeira demolição se deu em fevereiro. Rosinaldo teve apenas oito dias para deixar sua casa. “Foi desumano”, relatou. Com a indenização conseguiu comprar uma casa na comunidade do Pendura a Saia, também em Jacarepaguá. “O valor foi baixo e tive que parcelar em dois anos. A fiação está exposta e a casa fica em um local alto”, disse.

Rosinaldo tem um filho autista, de 18 anos, que sofre crises convulsivas. “Antes, os vizinhos ajudavam uns aos outros, era mais fácil. Agora, eu temo não poder socorrer meu filho em caso de urgência”, diz reproduzindo a mesma impressão de desamparo de outros expulsos pelo desenvolvimento.

Em todo o Brasil, as remoções realizadas em nome de grandes eventos estão acontecendo com pouco ou nenhum debate público prévio. Segundo o relatório Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, preparado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, há entre 150 mil e 170 mil pessoas em risco de remoção. No Rio de Janeiro, que abrigará a Olímpíada em 2016, os impactos são ainda maiores. Oito mil pessoas de 12 comunidades foram removidas,  há cerca de 22 mil pessoas, em 24 comunidades, em risco, e cinco comunidades já sumiram do mapa.

Segundo o Portal Popular da Copa, o mecanismo é o mesmo: inicialmente, há produção sistemática de desinformação, por meio de notícias truncadas ou falsas, somadas a propaganda enganosa e boatos, seguindo-se a pressão política e psicológica e, como ato final, a retirada dos serviços públicos e a remoção imposta.

De acordo com o relatório do portal da Copa, “o verdadeiro legado que esses eventos deixarão será a destruição de comunidades e bairros populares, aprofundamento das desigualdades urbanas, degradação ambiental, miséria para muitos e benefícios para poucos”. O texto aponta, ainda, para a instauração progressiva de uma “cidade de exceção”, que dá “garantias governamentais a uma copa privada”.
orlando juniorSão expressões de um fenômeno chamado de gentrificação, que higieniza e enobrece locais antes populares, promovendo o abuguersamento do espaço urbano e expulsando populações de seus locais de moradia. O professor Orlando dos Santos Júnior, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional  (IPPUR) da UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles, percebe, por exemplo que a valorização da área portuária no Rio de Janeiro e a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) recuperam o valor imobiliário e revitalizam áreas da cidade que estavam degradadas. Assim, beneficiam o capital que vai sempre se apropriar de novas áreas. “Quem acredita que o [morro do] Vidigal, daqui a 30 anos, vai ser favela? Pode ser um condomínio fechado, por exemplo”, indaga, referindo-se a uma das comunidades do Rio de Janeiro que oferece vista privilegiada das belezas da cidade.

“Os eventos vão legitimar as intervenções urbanas que parecem caminhar no sentido de criar novas condições de acumulação e reprodução do capital e um padrão de urbanização que se assemelha ao modelo neoliberal de cidade, adaptada às condições do capital”, analisa o pesquisador.

“Voltamos ao período dos anos tecnocráticos. Há em curso a justificativa de limpar a cidade na qual parte do traçado das obras passa por áreas pobres”, observa a arquiteta Ana Maria Ramalho, do Observatório das Metrópoles, Núcleo Recife.

Em Pernambuco, por exemplo, a Copa afeta quatro municípios com a construção de uma cidade inteligente (smart city), inspirada em projetos de Japão e Coreia do Sul. 

Inicialmente, a área estava destinada a conjuntos habitacionais e seria feita a regularização fundiária das ocupações existentes. A população não foi comunicada sobre a mudança nos padrões arquitetônicos. Na visão da arquiteta Lúcia Leitão, da UFPE, a opção por condomínios fechados nega e desvaloriza o ambiente público onde se dá a convivência social, a prática da urbanidade, no qual estavam habituados a viver. Segundo ela, “nesses ambientes, quase sempre insípidos em termos de diversidade cultural, convivemos apenas com os nossos iguais, isto é, com aqueles que pela renda, pela escolaridade, pelo status social enfim, são bem-vindos nesses espaços”.

REVISTA RADIS
Liseane Morosini *
Foto: Felipe Plauska



 

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